segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Perfil: Euzébio, ex-jogador de futebol


“Alô. Aqui é Euzébio. Fala, rapaz, beleza? Claro, pode falar. Não, eu joguei no Santos e não na Portuguesa. Joguei lá em 73 e 74, na final do Paulista contra a Portuguesa, acho que foi isso que você confundiu. Ou então você tá achando que eu sou o Eusébio, aquele português que jogou a Copa do Mundo de 66. Isso. Sem problemas. Até mais.”

Telefonemas como este são constantemente atendidos por Carlos de Jesus Euzébio na cooperativa de reciclagem em que trabalha, num bairro modesto de Santa Bárbara d’Oeste, cidade interiorana de São Paulo. Usa uma camisa de marrom forte, mangas curtas com os dois primeiros botões abertos; calça clara e cinto bege, sapatos da mesma cor do cinto. Seu óculos âmbar com cordão preto em volta do pescoço ajuda os cansados olhos a compensar a mipoia que veio com a idade. Relógio prateado no pulso, papéis no bolso da camisa. Bigode aparado, cavanhaque ralo, barba feita. Pisca muito enquanto fala, gesticulando o tempo todo, segurando uma caneta na mão direita. Fala forte e alta, franzindo a testa ao telefone quando ouve o preço de determinada mercadoria, abusa do sotaque típico do interior de São Paulo, típico de Santa Bárbara: puxa os “erres” das palavras. Uma faminta serra mastiga madeira no prédio vizinho enquanto a recepcionista conversa na antesala.

Mais conhecido pelo sobrenome, sua mesa em L está abarrotada de papéis, cadernos, livros, porta-canetas, dois telefones, computador, impressora, aparelho de som e CDs que vão de axé a Erasmo Carlos, do sertanejo de Roberta Miranda até Fagner. De tão lotada, mal se percebe que a mesa é azul, bem como todos os outros móveis da sala de aproximadamente nove metros quadrados, contrastando com o vermelho da veneziana. Na parede, um calendário com a foto de um caminhão, um quadro com uma oração e outro com uma foto do globo terrestre, evidenciando o continente americano, através do qual Euzébio viajou e, tal qual Colombo, conquistou.

Por ser também negro, é constantemente confundido com o atacante português Eusébio, artilheiro da Copa de 66 na Inglaterra. Nomes grafados de forma diferente. Futebol parecido. Atacante habilidoso, jogou em todas as posições durante sua carreira. Orgulhoso, lembra com brilho nos olhos de quando ficou trinta minutos no gol do Universidad Guadalajara sem ser vencido pelos atacantes adversários. “Fui um atacante invicto no gol”, comenta. Aprendeu a jogar também com a perna esquerda por exigência do futebol. Nos anos de Santos, o treinador Pepe gritava furioso, fazendo sumir os olhos cerrados de raiva através da grossa armação do par de óculos, que jogador de futebol tinha que saber chutar com as duas pernas. “Se for pra chutar com uma perna só, coloco o Saci pra jogar”, brincava Pepe. E Euzébio só ouvia, moleque no meio de tantos craques, cabeça baixa, aprendendo com os experientes. Chegara no Santos em 1972 após um mês de testes no Vasco da Gama, do Rio de Janeiro. Já havia jogado um ano antes em outro Vasco, o de Americana, hoje extinto. Começou sua carreira no time da cidade natal, o União Barbarense.

Euzébio jogava bola desde menino. Todo mundo praticava futebol naquela época “porque era o único esporte”, afirma. O chão de terra batida da Usina Santa Bárbara, onde nasceu em 1951, tinha muitos meninos bons de bola, mas nenhum como ele. Não jogava sempre, afinal era o filho do meio em uma família de oito irmãos – sem contar os cinco que sua mãe perdera durante a gravidez, no parto ou nas primeiras semanas de vida. Dona Lázara cuidava da casa e dos filhos com dedicação, cabendo ao seu Benedito e aos mais velhos a tarefa de ganhar o suado pão de cada dia. Euzébio começou a ir junto aos sete anos, já que os mais novos não tinham idade para trabalhar, embora soubessem que logo chegaria a hora deles.

A família vivia do corte da cana quando era época de cana; da venda de frutas, quando era época de frutas. Euzébio lembra do abacateiro ao lado da casa com saudade nos cansados olhos. Água vem à boca ao falar do abacate que comia com açúcar: colhia a fruta no pé e o granulado alvo e doce era a única coisa que não faltava, pois cana era só o que havia em toda a Usina. Além da cana, um cinema funcionava três noites por semana. Euzébio ia todas as noites, mas nunca entrou para ver um filme. Para ajudar na mirrada renda familiar, engraxava os finos sapatos dos ricos empresários que vinham da cidade.

Nos poucos meses quando não havia trabalho, pescava e brincava com seus irmãos. Apanhava quase todo dia do seu Benedito, já que a culpa de todas as brigas caía sobre ele, mesmo quando nem sabia do que se tratava. Mais tarde, foi estudar num seminário e era constantemente repreendido pelas rigorosas freiras e suas compridas palmatórias de madeira por não prestar atenção na aula. Estava viajando no pensamento, voltando para a Usina, para as peladas no campo de terra batida, para as brincadeiras com os irmãos, para o terço que rezava toda noite, exigência de seu religioso pai, que Euzébio faz questão de exaltar até hoje. Quando, aos domingos, canta na igreja matriz de Dom Bosco, em Americana, cidade vizinha a Santa Bárbara onde reside atualmente, Euzébio está, no fundo, prestando uma homenagem a seu Benedito.

A religião esteve com Euzébio em toda sua vida, especialmente no centro do gramado do estádio do Morumbi na tarde nublada daquele domingo, 26 de agosto de 1973. O Santos, escalado com Cejas; Zé Carlos, Carlos Alberto, Vicente e Turcão; Clodoaldo e Léo; Jair da Costa, Euzébio, Pelé e Edu empatara com a Portuguesa em 0 a 0 na final do campeonato paulista. Da beira do gramado, a imprensa, toda a favor da Portuguesa, via as arquibancadas lotadas de santistas após entrevistar alguns dos outros 10 mil que ficaram do lado de fora sem ingresso. O público de 116.156 torcedores é recorde paulista até hoje e dificilmente será quebrado. Jogo nervoso. A Portuguesa tinha um elenco jovem e, no Santos, Euzébio era o mais jovem e o mais nervoso. O garoto não foi escalado para cobrar os pênaltis, mas ficou ajoelhado no campo, mãos justapostas, camisa molhada de suor, rezando um Pai-Nosso. O goleiro santista defendeu os três primeiros pênaltis da Portuguesa, enquanto Zé Carlos desperdiçou a cobrança para desespero de Euzébio. Faltando ainda duas cobranças de cada lado, só uma tragédia tiraria o título do Santos. Então, na terceira defesa de Cejas, o árbitro Armando Marques, erroneamente, apita e declara o Santos campeão. O menino que cortava cana no interior de São Paulo vibra com seus companheiros e com os mais de 100 mil torcedores, corre, pula, grita. Só que, cinco minutos depois, os jogadores já perceberam o que havia ocorrido.

Assim que o juiz declarou o Santos campeão, o técnico Otto Glória, da Portuguesa, homem muito inteligente e profundo conhecedor do futebol, fez todos descerem para o vestiário. Recolheram as roupas e saíram, uniformes sujos no corpo. “Que vantagem eles tinham de voltar para o campo? Dificilmente o Santos ia perder os dois pênaltis, dificilmente o Pelé ia errar e a Portuguesa ia fazer os dois. Daí a Portuguesa ia perder o campeonato. Quando o Armando Marques desceu no vestiário para procurar os jogadores, não tinha mais ninguém. Bom, e aí? Não houve mais cobrança, mas o Santos ainda não era campeão. Não existia mais data, tinha sido num domingo e o campeonato brasileiro começava na quarta-feira, com o próprio Santos jogando. Não tinha mais data para disputar o jogo ou os pênaltis de novo. Aí a Federação, na mesma noite, resolveu declarar os dois times campeões. Moralmente, depois, para a imprensa, foi declarado Santos campeão, porque dificilmente o Pelé ia perder aquele pênalti”, lembra com saudades Euzébio.

O título de 1973 e as boas atuações em 1974 atrairam a atenção dos times mexicanos, em especial do Universidad Guadalajara, clube recém-promovido à primeira divisão do campeonato nacional e que contava com um treinador brasileiro. Euzébio fizera uma excursão com o Santos até o Chile e marcara três gols numa goleada sobre a seleção chilena. Mal sabia Euzébio que aqueles gols longe de casa o levariam mais longe ainda, cruzando a América que ele tem estampada no quadro de seu escritório. Como muitos dos jogadores chilenos da seleção atuavam no México, a partida amistosa foi televisionada no país e os empresários ficaram loucos com o futebol de Euzébio. Não demorou muito para que o contrato fosse assinado.

Euzébio desembarcou no areporto da Cidade do México com as malas cheias e o coração repleto de esperança de obter sucesso. Sua esposa Nilza, grávida de sete meses da primogênita Vanessa, enfrentou a viagem de avião com coragem e surpreendeu-se com tão calorosa recepção por parte dos mexicanos. O idioma não era problema e o jovem casal conseguia se comunicar com os vizinhos, sempre muito solícitos. As longas jornadas fora de casa deixavam Euzébio apreensivo com sua esposa na iminência de entrar em trabalho de parto em uma terra estranha, longe de casa mas que seria sua casa por sabe-se lá quanto tempo. Naqueles dois primeiros meses, Euzébio sofria quando tinha um jogo em outra cidade nos finais de semana. “A equipe hospedava-se em um hotel na noite da sexta-feira, viajava no sábado e jogava no domingo”, conta. Euzébio só revia a esposa na segunda. Telefonemas eram trocados constantemente.

Euzébio fez seu nome no Universidad Guadalajara. A equipe, conhecida por “leões”, mudou de apelido. Agora eram “leões negros”, pois além dele havia mais dois negros. O time, que havia subido de divisão naquele ano, goleava todos os adversários e o atacante brasileiro que era confundido com o goleador português homônimo fazia sucesso. No México havia o chamado “dia do clube”, uma data escolhida pelo time para, uma vez no ano, dobrar o preço do ingresso. E toda rodada, quando os leões negros visitavam a cidade, era dia do clube. Euzébio, ao percorrer as ruas das cidades mexicanas com o sempre animado ônibus da equipe, via campos de várzea onde os peladeiros vestiam uma camisa única, mas que se tornara muito conhecida a partir daquele ano: o vermelho, amarelo e preto do Universidad Guadalajara atraía o olhar das pessoas da mesma maneira que o futebol apresentado pelo time.

No dia 06 de novembro de 1974, Euzébio acordou cedo, saiu do apartamento e desceu à discoteca do hotel três estrelas em que a equipe estava concentrada. Naquele dia, o Universidad jogaria o clássico da cidade contra o Atlas. Naquele dia, Euzébio completava 23 anos. Cumprimentou o porteiro, deu autógrafo a um menino que saiu correndo contente até seu pai e conversou com o gerente da discoteca. Reservara-a para sua festa de aniversário depois do jogo, esperando comemorar também a vitória com dirigentes, amigos, companheiros de time e com sua esposa, que havia dado a luz à Vanessa um mês antes, somando cerca de sessenta pessoas.

Estádio Jalizco lotado. Um a zero para a Universidad. Jogo duro. Euzébio recebe a bola atrás do meio campo e sai com ela dominada. Dribla um. Outro. A torcida vai se levantando e começa a gritar. Dribla mais um. Dá uma meia-lua em Albert, zagueiro argentino que fora titular da seleção. Euzébio era rápido e, na hora em que Albert virou-se, já estava na cara do gol. O goleiro Gato Vargas saiu para fazer a defesa. Euzébio deu outra meia-lua e a torcida já vibrava, barulho ensurdecedor no estádio. Euzébio estava sozinho, cara-a-cara com o gol. O goleiro, batido, jazia fora da área. Com um toque na bola, o atacante ficou de frente para o gol. Naquele momento, todos estavam paralisados esperando pela conclusão. Muitos já comemoravam. Os rojões começavam a ser acesos. Euzébio pensou: “vou meter lá no ângulo”. Na hora do chute, ele escorrega e chuta completamente torto, a bola saindo pela linha lateral. O Jalizco emudeceu. Euzébio, caído, não teve coragem de olhar à sua volta. Ninguém acreditava que aquilo havia acontecido. Gato Vargas levantou-se, esticou a mão para Euzébio que não reagiu, atônito.

A Universidad Guadalajara ganhou do Atlas por 1 a 0. No jogo seguinte, Euzébio marcou três gols na vitória por 5 a 2 sobre o León, sendo um deles um chute quase sem ângulo. Foi artilheiro isolado durante mais da metade do campeonato. Mas não importava. No dia seguinte ao jogo contra o Atlas, os jornais estampavam em letras garrafais com uma foto de página inteira: “A falha do século”. Seqüências fotográficas mostrando toda a jogada foram transformadas em pôsteres. Quando se falava de Euzébio, a frase era obrigatória: “o da falha do século”. Naquela mesma época, Euzébio foi o jogador do mês de um jornal de Guadalajara. Ganhou um almoço numa churrascaria, e uma placa de prata em que se pode ver “Jogador do mês, novembro de 1974: Euzébio (Universidad Guadalajara) – o da falha do século”. Ele a guarda até hoje em sua estante.

Depois do fatídico jogo, Euzébio recebeu os convidados na discoteca e, apesar da vitória e do aniversário, a festa só tinha um tema: a malfadada jogada. Um convidado perguntou: “o que aconteceu? Você fez de propósito?”. Euzébio parou, pensou e respondeu, segurando um copo de cerveja na mão direita: “Nem que eu tentasse cem vezes, erraria novamente”. Uma reportagem da Televisa, canal de televisão mexicano, disse que “a precipitação nunca é boa”. Puseram em manchete, falaram do lance, de Euzébio, sua vida e da época do Santos. “Mas aquilo não foi precipitação, foi palhaçada mesmo. Eu podia ter entrado com bola e tudo se eu quisesse, driblei cinco jogadores, mas eu quis enfeitar e chutei a bola pra fora” comenta ele hoje, rindo muito de tudo isso.

Euzébio era conhecido por sua velocidade e habilidade. Entretanto, uma lesão no tornozelo o faz até hoje não conseguir correr muito bem. Após oito anos de muito sucesso no Universidad, teve uma passagem rápida de um ano pelo Monterrey e chegou ao León em 1984. Deslocado para o meio, jogando como segundo volante pela esquerda, Euzébio se encaixou perfeitamente no esquema do time e era titular absoluto. No campeonato de 85, jogou todas as partidas sem sequer ser substituído ou suspenso por cartões. No penúltimo jogo da primeira fase, Euzébio torceu o tornozelo e saiu de campo chorando. Sem condições para a partida seguinte, foi substituído por um novato pouco experiente, que não agradou.

Chegada a hora das eliminatórias, a imprensa alegava que Euzébio não queria jogar contra seu ex-time, o Universidad. Na semana de preparação, o atacante não conseguia sequer andar, quem diria treinar. E veio o médico: “Você tem que jogar”. “Doutor, eu não posso, não tenho condições, não posso andar”. “Não, você vai jogar. Nós damos uma injeção no seu pé aí e você joga”. “Só se for assim, porque eu não estou agüentando”. A essa altura, Euzébio não sabia que tinha rompido o ligamento do tornozelo. O clube não possuía estrutura de fisioterapia e a lesão não fora constatada. Antes do jogo, recebia seis injeções de xilocaína em volta do tornozelo. Uma atadura muito cara, equivalente a R$200, era colocada para amortecer os impactos. No intervalo do jogo, tudo se repetia. Por volta dos 35 minutos do segundo tempo, Euzébio mordia os lábios de dor. Conseguiu jogar a primeira partida inteira, ajudando na vitória de 1 a 0. Na partida de volta, tudo de novo. Injeções, atadura, dor. Muita dor. O time perdeu por 2 a 1 e o jogo foi pra prorrogação. Euzébio mal se movia em campo. Não agüentava a dor e o técnico não podia mais fazer substitução alguma. O jogo foi para os pênaltis e o religioso Euzébio rezava pela classificação e por seu tornozelo inchado, dolorido. A xilocaína não mais fazia efeito e a atadura apertava a perna. Dor intensa. Euzébio tirou as chuteiras, ficando descalço em campo. Ele que normalmente seria o primeiro a bater o pênalti por sua experiência, sequer foi relacionado. Até o goleiro cobraria, se fosse preciso. Mas não foi. O León eliminou o Universidad. E a torcida adversária, ao final do jogo, aplaudiu de pé o ídolo de outrora, pela vitória e pela força de continuar mesmo impossibilitado pela dor. A mesma torcida que o vaiara quando estava ao seu lado na falha do século o aplaudira, ele agora no time rival, na conquista através da garra.

No final do jogo, Euzébio foi de muletas até o ônibus, pois não agüentava encostar o pé no chão. Subiu as escadas com dificuldade e sentou-se logo no primeiro banco. O médico trouxera um balde de gelo e Euzébio colocou o pé ali dentro. Cinco minutos depois, Euzébio não sentia mais o pé. E viajou assim por quatro horas, alegre com a classificação, cantando com os companheiros, sem saber que ele poderia ter perdido o pé deixando-o ali, quase congelando.

No final daquele ano, Euzébio voltou para o Brasil. Passaram-se 12 anos desde sua primeira viagem à Cidade do México, com sua esposa grávida da primeira filha. Depois dela, vieram Rodrigo e Christian. O primeiro, para o orgulho do pai, ordenou-se padre há dois anos. O segundo tem a música nas veias. Logo percebe-se que herdaram as qualidades do pai, que une religião e música, atualmente estudando teclado para “ajudar na missa”, diz ele. Fato é que quando voltou, Euzébio não se contentou em parar. O futebol era sua paixão. Após oito meses parado recuperando-se da lesão do tornozelo, voltou a jogar pelo clube que o revelou, o União Barbarense. Jogou lá até o final de 86, quando decidiu novamente parar e, novamente, voltou atrás. Um convite da Francana fez a família toda sentir a falta do pai por mais algum tempo.
Antes de um jogo amistoso de preparação para o campeonato paulista, Euzébio foi ao vestiário. Cumprimentou o roupeiro, colocou sua mochila de roupas no armário, fez um breve aquecimento e foi beber um copo de água. Ao lado do bebedouro, duas garrafas de café. Euzébio perguntou então ao roupeiro: “Por que tem duas garrafas de café?”. “Porque uma é da boa”. “Ah é?”. “É”. “Dá isso aqui”. Ele segurou a garrafa e foi em direção ao ralo do banheiro. O roupeiro largou a sacola com os uniformes e falou: “Vai fazer o quê?”, ao que Euzébio respondeu: “Fica vendo”. Desrosqueou a tampa, virou a garrafa e jogou todo o líquido preto e quente pelo ralo.

Um grupo de jogadores se rebelou contra ele. Queria bater em Euzébio. A garrafa de café “boa” à qual o roupeiro se referira continha drogas estimulantes, as chamadas “bolinhas”, que um grupo de jogadores usava em dia de jogo. Euzébio comprou a briga com todos e até os que não usavam a substância ficaram contra ele. “Em toda a minha vida eu sempre gostei das coisas direitas. E droga é uma coisa que eu não admito”, diz, nada arrependido de ter virado inimigo número um do grupo, que não admitia ficar um jogo sequer sem a droga. Na terça-feira depois do jogo, antes de começar o treino, o técnico reuniu os jogadores para uma conversa e o grupo atacou Euzébio. Ele respondeu, calmamente: “Todo mundo já falou? Então vocês vão me ouvir. Até certo ponto vocês têm razão, que eu não tenho nada a ver com a vida de vocês. Só que eu não quero que ninguém se meta na minha também. Não pensem vocês que vocês estão se beneficiando não, porque vocês estão prejudicando todo mundo aqui. Primeiro jogo amistoso antes do campeonato!”. “Não te interessa”, retrucou um dos que tomava o café da garrafa boa. “Interessa e muito. Vocês estão disputando o campeonato para quê? Para passar mais um campeonato? Não, eu quero disputar um campeonato para subir com o time, eu vim aqui para isso. Sou um cara ganhador e não quero perder nem jogo de truco ou cacheta. Eu quero ganhar sempre, não só hoje. Agora, eu quero que todos vocês que estão a favor dos que tomam e vocês que tomam, que vocês digam para mim o que vocês querem fazer. Porque na hora que tiver antidoping, esses cinco não vão jogar. Ou se vão entrar no campo, não vão usar droga. Aí nós vamos entrar com cinco jogadores a menos praticamente. Então se cuidem, treinem, porque a droga não vai levar a nada”. O grupo rachou de uma vez por todas e ninguém sequer conversava com Euzébio. Não tocavam a bola para ele em campo.
Alguns meses depois, o goleiro do time, que não usava as “bolinhas” mas que havia ficado do lado dos companheiros, disse para Euzébio: “Olha, você tinha razão. Você, no meu conceito, mudou muito, porque a gente tinha um conceito diferente de você mas você provou para todos nós o que, como homem e como jogador, você é”. “Tá vendo agora onde tá o nosso time, na reta final, precisando ganhar para classificar? Você viu o que aconteceu?”, respondeu Euzébio. O grupo da droga ficaria de fora do último jogo. Ele perguntou ao goleiro: “Cadê o Paulo Neli agora?”. “Tá machucado”. “Tá machucado o cacete, não quer jogar. Foi tudo o que eu falei antes, porque se ele for jogar, vai ser pego no antidoping e se não tomar, vai ficar andando em campo, morto”.

Ao final do campeonato, o grupo fez uma reunião com o time inteiro para expulsar Euzébio do clube. E o Presidente Riad, um riquíssimo turco dono de uma cadeia de hotéis que havia exigido a contratação do veterano meia, falou para todos quando soube: “Eu estou sabendo do pedido que estão fazendo aí. Eu só vou falar uma coisa, não quero nem saber do que se trata: quem quiser , pode ir. O Euzébio fica. Quem quiser ir pode ir lá dentro, fala com a Dona Nê, assina lá e recebe, pode ir embora, qualquer um. O Euzébio fica.” Ele lembra emocionado da cena. “O Riad me defendeu com unhas e dentes, porque me conhecia como pessoa e deve ter imaginado que não tinha nada de errado comigo, e sim com eles. E ele ficou do meu lado”.

O telefone toca, Euzébio atende e, depois do telefonema, pede desculpas: “Tenho que ir”. Pega uns papéis, pede para a secretária anotar qualquer recado e desce as escadas do sobrado que abriga a empresa de reciclagem onde trabalha. Do lado de fora, o prédio pintado de branco e verde tem uma aparência velha, gasta pelo tempo. As pilhas de garrafas plásticas prontas para serem recolhidas ocupam quase todo o espaço da garagem e o portão vermelho range pela dor que a ferrugem lhe imputa. Algumas crianças de uniforme brincam na rua, mochilas jogadas na calçada suja, esperando a hora de irem para casa. Euzébio olha para elas e pára por um momento, lembrando da infância na usina, da cana e do abacateiro; daquela tarde nublada de domingo quando o Santos foi declarado campeão antes da hora; da multidão emudecida no estádio Jalizco após o escorregão que lhe valeu um apelido indigesto; do balde de gelo e a sensação de alívio no pé; da garrafa de café e do ralo; de quando arriscou a carreira de treinador e perdeu dinheiro; da ordenação do filho. Pára e lembra que é feliz. Pára e lembra que tem que ir almoçar e estudar teclado. Oferece a mão, aperto firme. “Obrigado, Euzébio”. “Eu é que agradeço. Hoje falei de coisas que nem lembrava mais”. E sai andando devagar, da mesma maneira que fazia quando voltava para sua casa na usina ao entardecer, após mais uma partida de futebol naquele chão de terra batida.