Vida de técnico não é fácil – no futebol, mais que em outros esportes, talvez só não seja mais difícil que a do juiz, ou a da mãe do juiz. Ser treinador de seleção brasileira, então, é assinar um termo de aceite para os infindáveis questionamentos e xingamentos que virão. Não se pode pensar, entretanto, que nas seleções de base a caminhada seja menos ardilosa. Pelo contrário: as dificuldades para avaliar os jogadores e montar um plantel são infinitamente superiores, ao passo que a pressão por resultados é a mesma da categoria profissional.
Um homem sentiu vividamente esta realidade na pele nos últimos três anos. Luiz Antonio Nizzo, o Lucho, assumiu a seleção brasileira sub-17 das mãos de Edgar Pereira pouco antes do Mundial de 2007, na Coreia do Sul. O time foi eliminado precocemente, e depois, também sob seu comando, o Brasil perderia para o Equador nos Jogos Pan-Americanos. Apesar das conquistas de outros torneios internacionais e vários jogadores já famosos revelados, Lucho foi severamente criticado por novo insucesso no Mundial do ano passado, na Nigéria.
Magoado com as críticas e ainda indignado com denúncias infundadas que fizeram, à época, sobre convocações de jogadores e acordos com empresários, Lucho atendeu a reportagem do Olheiros pela segunda vez, desde o lançamento de nosso site. Desde o quarto 801 do hotel em que estava hospedado em São Paulo, na última semana, “trabalhando, esperando por propostas”, ele diz, o carioca de 46 anos atendeu-nos em uma conversa telefônica de mais de uma hora. Aqui, fala sobre o trabalho desenvolvido, os problemas enfrentados no relacionamento com os clubes e sentencia: o trabalho nas categorias de base precisa ser revisto.
A entrevista está dividida em duas partes, e você acompanha a segunda parte na próxima quarta-feira, também no Olheiros.
Olheiros - Como você avalia os resultados dos dois últimos mundiais, muito abaixo da expectativa criada com duas grandes gerações? Aproveite e faça um balanço geral do seu trabalho dentro da seleção sub-17
Lucho Nizzo - Eu acho que, dentro do período em que eu fiquei, e das condições em que eu fui, foi um trabalho muito bom. Lógico que não foi coroado com as conquistas, mas se nós levarmos em consideração, o início foi com a geração que nasceu em 1988, em que conseguimos montar uma equipe e logo em seguida assumiu o Nelson [n.E.: Rodrigues, técnico da seleção brasileira sub-20], mas no Mundial foi todo mundo que trabalhou comigo. Na geração ‘90, assumi o trabalho do Edgar [n.E.: Pereira, técnico da seleção brasileira sub-17 antes de Lucho], em cima do Pan-americano e Mundial, então não tive muita coisa a fazer a não ser dar prosseguimento ao trabalho que já tinha sido iniciado. Com os meninos nascidos em 1992 sim, tive tempo de montar o grupo, ganhamos quase todas as competições preparatórias, mas infelizmente no Mundial não houve êxito. Quando a gente fala de sucesso, é complicado. O que é sucesso? É um trabalho iniciado, a formação, a descoberta de jogadores que eram desconhecidos da mídia, como o Gerson, do Grêmio, o Alysson, o Romário, que pegamos novinho, um Batata, um Welinton, um Wellington silva. Então eu acho que, dentro do nosso trabalho, que é de descobrir e formar novos valores, acho que o trabalho foi muito bom. Lógico que culminaria as conquistas, mas nem sempre podemos ganhar. A questão do sucesso depende de quem esta de fora e vê o trabalho com a gente. Infelizmente, jogadores como Neymar e Coutinho não reeditaram no Mundial tudo aquilo que já haviam feito. Estou tranquilo, consciente do meu trabalho. Dei o máximo, fiz um trabalho pensando na formação. Só eu sei as dificuldades que passei para trabalhar com esses meninos, são muitos problemas com os clubes. O universo da base é muito grande, o que fica para a mídia é só o produto final, mas ninguém vê o dia a dia do nosso trabalho.
Quais são esses problemas de que você fala? São questões de organização dentro da CBF como um todo? Há realmente tantas falhas como se comenta?
Nizzo - Seria hipócrita da minha parte eu estar enumerando situações que a CBF tenha feito. Não tenho nada a reclamar da CBF quanto a suporte e apoio quando estive lá, só tenho que agradecer pela oportunidade que tive. A dificuldade a que me refiro é a dificuldade do próprio trabalho de base no país, mas entendo que é a política de cada clube. Exemplo: hoje, a categoria que estamos trabalhando é 94, mas você pouco verá jogadores nascidos em 1994 titulares de seus respectivos clubes, porque vai jogar um garoto de 1993, que é o último ano. Então o que acontece? Você sai para uma competição e vê poucos jogadores que pode levar. Jogadores 93 não tem validade, precisa de 94. Então é o que aconteceu comigo. Quando começamos com 92, priorizava-se 91. Na Copa 2 de julho que participamos, quase não vi 92 jogar. E aí, o que acontece? Você tem que ir ao clube, observar treinamentos coletivos para que você possa detectar alguém. Foi assim que detectamos o Dodô, por exemplo, juvenil do primeiro ano que não jogava, era reserva, mas achamos que era importante observar. Convocamos para o torneio amistoso nos EUA e foi bem, passou a ser titular da seleção. E aí, o q acontece? Torna-se titular do Corinthians e começam os comentários de que o treinador da CBF tem conchavo com empresários. É uma visão que tem que acabar. Então, você convoca o Neymar – e poucas pessoas realmente conheciam o potencial dele, salvo as que o acompanhavam. Quando ele vai para a seleção, o treinador diz que ele não tem nada que jogar na base, deve ir pra seleção profissional. É preciso calma. Hoje todo mundo está entendido da base, a palavra base virou moda. Quanto treinador que nunca passou por lá, não conhece o universo da categoria de base, se acha preparado para falar de algo que não sabe! Aí não liberou o garoto para o Sul-Americano, tive que jogar com um time diferente, e quando ele chega para o Mundial não há sintonia com o time.
Nas seleções de base, fala-se muito em clubes favorecidos e até mesmo em esquemas para a convocação de jogadores, com a participação de empresários. Você já ficou sabendo de alguma coisa do tipo, ou alguém já te propôs isso?
Nizzo - A gente escuta um monte de coisa, mas não se pode dizer o que é verdade. Posso dizer que nunca participei de algo assim. Estou aberto a qualquer tipo de investigação, provas, o que for. Quem tiver qualquer coisa contra mim, que apareça e traga subsídios que me comprometam. Não tenho nada a temer, trabalhei, fiz meu melhor, e não tenho culpa se a legislação esportiva faz com que o jogador precise ter um empresário que tome conta dele. Se a gente convoca o jogador, e ele tem empresário, que culpa tenho eu? Não tenho ligação com empresário, conheço vários, claro, mas quem trabalha nesta área acaba automaticamente tendo contato. Quem me conhece sabe da minha posição, nunca quis ter nenhuma relação com empresário para que não ocorresse nenhum comentário maldoso depois. A minha maior satisfação, meu maior título, é saber que tive uma participação na carreira desses meninos. Agora, infelizmente, comentários maldosos a gente vai ter sempre.
Você acredita que o calendário nacional de competições de base está correto ou precisa de alterações? E o espaço de dois anos entre os Mundiais, é correto?
Nizzo - Acho que está correto sim, o problema não é o calendário, mas criarmos uma condição de trabalho que proporcione ao profissional da base fazer um trabalho de formação e não com a obrigação de ganhar títulos. Até mesmo o Olheiros fez um ranking! (risos). O problema disso é que nós profissionais nos aperfeiçoamos e entendemos a intenção, mas os dirigentes do clube acabam pegando aquilo e aumentando a cobrança dentro dos próprios clubes, afinal os dirigentes não evoluíram ao longo do tempo. Mas voltando, o calendário não é tão determinante, o trabalho na base teria que ser mais qualificado.
Até porque existem muitos ex-jogadores amigos de dirigentes virando técnicos de base.
Nizzo - Exatamente! Pra tudo que você vai ensinar na vida, você precisa ter o conhecimento, saber o processo de aprendizado. Posso ter sido um grande jogador, mas se não sei como trabalhar o aprendizado, não tem como. Posso ir bem no profissional, mas na base, em que você tem um pré-mirim, mirim, em que o garoto não sabe nada, é difícil.
Você acredita que exista de fato uma carência de bons camisas nove na base brasileira? Há mais ou menos bons centroavantes surgindo? A que se deve isso?
Nizzo - Acho que é uma questão de evolução, o futebol passa por momentos de evolução e também situações cíclicas. Fui muito criticado durante o Mundial porque eu jogava com apenas um atacante. E pergunto: a equipe que mais ganha no mundo, o Barcelona, joga como? Jogava como eu: um volante de contenção, dois meias por dentro, distribuindo o jogo, dois meias atacantes enfiados e um atacante de área. O Barcelona joga assim e todo mundo dizia que era uma grande equipe. Aí, aqui se faz um trabalho igual e muitos falam que precisa de mais atacante. Não acho que o que determina uma equipe ofensiva sejam atacantes, mas sim jogadores que fazem a alimentação, a chegada desse meio ao ataque. Hoje temos muita carência sim de meias atacantes... não meia armador, mas meia atacante, aquele antigo camisa 10, que encosta, alimenta e chega pra finalizar.
Nizzo - Claro. Ele começou comigo, foi sempre muito solícito, humilde, de caráter, hombridade, gosta de trabalhar. Certa vez me disse: “professor, jogo onde você quiser”. Então, até voltando à pergunta, antes se tinha dois volantes, dois meias, dois atacantes, mas o futebol muda. Hernanes foi melhor jogador do campeonato brasileiro há pouco tempo, mas não era meia atacante, era volante. Quando você tem dois atacantes e não tem um meia que chega, o que acontece? O atacante acaba voltando pra buscar a bola e acaba fazendo o pivô...E com isso, o que os treinadores começaram a fazer? Deixam um atacante na área e um homem vindo de trás. A minha visão é essa: usar o meia atacante. No próprio mundial me criticaram porque coloquei o Zezinho como atacante, mas ele jogou na Série B pelo Juventude e foi destaque jogando assim, como atacante pelo lado direito. O Neymar jogava pelo lado esquerdo, e trouxe o Coutinho pra fazer essa função de ligação. Eu tinha na minha cabeça jogadores muito ofensivos. Não funcionou? Mas eu tentei. Conversei com cada um deles, os coloquei na seleção da forma como jogavam nos clubes.
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